Tecnologia do Blogger.
RSS

Espetáculo da Realidade


Como prometido, eis aqui minha matéria sobre a ascensão das cinebiografias no Brasil nos últimos anos. Entrevistei o Micael Langer e, é claro, perguntei sobre a suposta “decadência da ficção”. Confira essa e mais respostas na reportagem abaixo (assim como no blog da Petrobras, antes de ser publicado no jornal, rs).

Pelé, Cazuza, Simonal, Garrincha e Arnaldo Baptista, além de importantes para formação da identidade nacional, têm em comum o fato de terem se tornado personagens biografados pelo cinema brasileiro. A adaptação dessas trajetórias de vida em um curto espaço de tempo reflete no significativo aumento da produção de cinebiografias no Brasil. Este tipo de apropriação da realidade tem se mostrado uma fórmula de sucesso, seja em documentários ou histórias reais com pitadas de ficção. O público brasileiro está cada vez mais acostumado a ir ao cinema para assistir filmes “baseados em casos reais”. Pode-se dizer que esse panorama foi iniciado com a retomada do cinema brasileiro depois do governo Collor. Neste período, foi extinta a Embrafilme (1990) e, ao mesmo, toda a produção de cinema ficcional existente no país até então.

Essa tendência de narrativas em busca do real pode ser notada nas estatísticas sobre documentários da Agência Nacional de Cinema (Ancine). Em 1994, apenas um documentário entrou em circuito comercial; em 2004, foram 17 produções do gênero; e em 2007, última estatística divulgada, foram 32 – o que representou 30% da produção do ano. Paralelamente, houve um aumento sucessivo no interesse em se produzir filmes sobre personalidades com alguns elementos de ficção. São exemplos deste movimento os sucessos de bilheteria “Cazuza” (2004), com mais de três milhões de ingressos vendidos, e “Dois filhos de Francisco” (2005), que registrou 5,3 milhões de espectadores, tornando-se a nona bilheteria da história entre os filmes brasileiros.

A declaração dada por Micael Langer, um dos diretores de “Simonal – Ninguém sabe o duro que dei”, ilustrou esta questão. Segundo ele, “A ficção está em decadência. É como se as histórias tivessem acabado”. Estas palavras foram reproduzidas em vários sites de notícia e acenderam a discussão sobre a “onda” de cinebiografias. “Quando eu digo cinema de ficção, me refiro a 90% do cinema assistido no mundo, ou seja, o americano. Esses roteiros, em sua grande maioria, seguem manuais e diretrizes já determinados, são previsíveis. No documentário, a história ganha mais força, pelo simples fato de ser inspirada no real”, explica Micael, em entrevista por e-mail ao “Oficina do Impresso”.

A tese de que as histórias estariam se esgotando seria reforçada, de acordo com o diretor, pelo grande número de sequências, adaptações e refilmagens, algumas até com poucos anos de diferença do original. “É bom também lembrar de casos como os dos filmes de asteróides em rota de colisão com a terra, de vulcões em erupção, dentre outros, que foram feitos na mesma época, por estúdios diferentes, pegando carona em alguma ‘tendência’”, reitera. No entanto, é importante salientar que as produções de documentários ainda estão longe de alcançar os números do “cinemão” americano – mesmo com uma possível crise de criatividade, salvo raras exceções como o fenômeno anteriormente citado “Dois filhos de Francisco”.

Segundo Micael Langer, a explicação para o crescente interesse em filmar enredos baseados na vida de pessoas famosas seria a identificação do público com essas histórias e também certas características da legislação brasileira. “No Brasil, não é viável fazer documentários sobre temas mais espinhosos, como os do Michael Moore, por exemplo. Aqui, o documentarista precisa pedir autorização para quase todas as pessoas que aparecem no filme, independente de como essas imagens forem usadas e onde foram coletadas. Isso acaba fazendo com que a maioria dos documentários brasileiros seja composta de homenagens ou de filmes de personagem, os chamados filmes chapa branca”, critica.

Lançamento recente, “Jean Charles” – filme sobre o brasileiro morto pela polícia inglesa em um metrô de Londres em 2005 – traz no papel-título o consagrado ator Selton Mello e reforça o filão de histórias da vida real. Entre os próximos lançamentos do cinema brasileiro estão adaptações das biografias de inúmeros personagens – vivos ou mortos – que também reafirmam esta tendência. Entre as histórias estão as do jogador Ronaldo, do presidente Lula, do ex-presidente Jânio Quadros, de Bruna Surfistinha (ex-prostituta que escreveu o livro “O doce veneno do escorpião”), Tom Jobim, Cássia Eller, Gonzaguinha, Grande Otelo, Chiquinha Gonzaga, Mamonas Assassinas, entre outros.

A atração pelo real

Explicar as causas e consequências deste tipo de narrativa na sociedade foi, certamente, o principal objetivo do artigo “O apelo realista”, assinado pela pesquisadora em comunicação da USP Ilana Feldman. A doutoranda aborda as maneiras pelas quais as relações humanas modernas tornaram tão habitual assistir produções sobre a vida como ela é. Exemplos disto são reality shows, vídeos divulgados na internet e, o assunto em pauta, cinebiografias. “O inchaço da vida privada é um dos motivos para o incremento das cinebiografias no cinema brasileiro. Ou seja, esse excesso de produções midiáticas sobre a realidade nos distanciaria de uma vivência real para nos aproximar de uma experimentação mediada pelo cinema”, teoriza.

No artigo, a autora explica que o principal motivo do sucesso desses filmes se deve ao fato de já começarem a ser exibidos totalmente legitimados pela realidade, o que facilitaria a adesão dos espectadores à história. Outro fator seria a identificação com os personagens, que vai sendo construída ao longo da narrativa e que contribui na construção da identidade nacional. “Essa mediação deixa de ser externa para se tornar parte crucial de nossa visão de mundo e daquilo que tomamos por realidade”, acredita.

A pesquisadora vai ainda mais longe em sua reflexão e afirma que “tal apelo realista da produção cinematográfica brasileira não é apenas efeito de uma tendência estética e de mercado, sendo, antes, também determinado pelo modo de produção hegemônico dessa cinematografia. Produzida com dinheiro público, captado em grandes empresas via leis de incentivo, essa narrativa precisa ser socialmente justificada. Sendo assim, essa produção cinematográfica responde a uma demanda por maior inserção na realidade. Sem contar, a necessidade de ‘responsabilidade social’ por parte das empresas financiadoras”.

Filmes feitos por admiradores

O professor de cinema da PUC-Rio Miguel Pereira acredita que as biografias filmadas não constituem um fenômeno moderno. “A curiosidade das pessoas é mesmo saber a origem das personalidades e como elas conseguiram chegar ao lugar de prestígio onde se encontram”, rebate. “Tudo, hoje, muda muito rapidamente. Enxergar tendências é cada vez mais difícil”, continua. O professor acredita que as cinebiografias geralmente são fruto da paixão pelo biografado. “Se Hollywood resolvesse lançar agora um filme sobre Michael Jackson certamente seria um grande sucesso”, diz.


Miguel considera que as fronteiras entre o documentário e a ficção estão cada vez menos nítidas. “No fundo tudo é ficção, cada filme reflete o ponto de vista de quem o fez, é uma elaboração pessoal, embora partilhada com o grupo de realizadores”, diz. Seu pensamento é retomado pela documentarista Cristiana Grumbach, diretora e assistente de direção de Eduardo Coutinho em filmes como “Edifício Master” (2002) e “Jogo de Cena” (2007), que estreou na direção em 2005 com o filme “Morro da Conceição”. Ela acredita que o próprio fato de posicionar a câmera diante do mundo seria criar um artifício de linguagem.

Porém, diferente de Miguel Pereira, Cristiana consegue visualizar uma tendência. “O surto de produção de cinebiografias é uma realidade. Acho que a tendência das pessoas filmarem biografias de grandes personalidades está ligada à idéia de que um documentário deve dar conta da totalidade de grandes temas”. A cineasta atribui o crescimento no número de documentários produzidos à crença de que é mais fácil realizar este tipo de filme. “As pessoas acham que a ficção demanda mais técnica. Esse negócio de cinebiografia tem a ver com a idéia de que qualquer um faz documentário. Isso contribui para que haja uma certa banalização da ideia do que é fazer um documentário”, afirma.

Cristiana tem um ponto de vista otimista a respeito da decadência da ficção. Para ela, a crise no ato de criar histórias supõe uma reflexão sobre como fazer cinema e incentiva a discussão sobre novas linguagens. “A crise é exatamente um questionamento sobre como contar histórias de outra maneira. Aí não importa se você está lidando com documentário ou ficção. Porque, na verdade, tudo é artifício, tudo é filme. E a discussão sobre tudo isso é muito bem-vinda”, opina.

  • Digg
  • Del.icio.us
  • StumbleUpon
  • Reddit
  • RSS

2 comentários:

wedis disse...

Se é pra falar do real, que seja de um real 'realmente' importante e que traga algo de proveitoso para as pessoas. Ficar se concentrando na vida de alguém acho isso sim falta de criatividade. Tem tantas situações no mundo a espera de serem contadas. Cabe aos cineastas as verem

Tamyres Matos disse...

Acho que a grande questão é a sensibilidade de quem conta as histórias. Não é necessário você ter um roteiro "vivo" para contar histórias maravilhosamente bem. A vivacidade vem da observação do cineasta que dá um pouco de sua alma ao filme. A questão das cinebiografias, que podem ser muito boas e sensíveis, tem a ver (na minha opinião) com a qualidade de um repórter. A etapa de investigação, essa coisa toda. E, além do mais, como acho que ficou claro na matéria, é muito sutil, quando você produz algo de acordo com seu olhar, a diferença entre realidade e ficção.

PS.: Tudo isso pode revelar também uma falta de oportunidade de mostrar sua criatividade. Um mercado fechado e exageradamente "comercial" pode facilmente tolher a liberdade de um bom criador!